Resumo
Neste artigo pretendemos demonstrar como a análise do poder pastoral, no contexto da investigação foucaultiana da governamentalidade, sugere que as tecnologias de poder do estado moderno foram legadas, transmitidas pela igreja cristã. Haveria uma imbricação entre o estado moderno e a igreja que remontaria – o que parece paradoxal - justamente ao momento de ruptura entre estado e igreja, no século XVI. Seria neste período que a relação entre ambos seria mais forte no que diz respeito às práticas de poder, entrando um elemento religioso no campo da política. Este elemento é o poder pastoral.
Introdução
É na genealogia do poder pastoral que Foucault vai buscar o tipo de poder que corresponde ao ato de governar. O poder pastoral é um poder apolítico, e seu objetivo principal é salvar o rebanho. É um tipo de poder que pode ser chamado de oblativo: quem o exerce tem sempre em vista o bem do outro, visa a parte, e não o todo.
Foucault o considera decisivo no movimento em direção à centralização do poder político no estado, sendo exercido através de técnicas que visam guiar a conduta do indivíduo de forma assídua e permanente. O poder pastoral é, fundamentalmente, uma concepção da relação entre Deus (ou o rei, ou um líder) e seres humanos baseada no modelo da relação entre um pastor e suas ovelhas. Foucault localiza este modelo de poder operativo em toda parte no oriente mediterrâneo pré-cristão, mas em especial na tradição hebraica, na qual ela é exclusivamente uma relação religiosa (Deus é o pastor de seu povo) . O pastorado será fundamental para a história das práticas políticas desenvolvida por Foucault, constituindo-se como o lugar de uma importante transformação das relações de poder.
A ausência do poder pastoral entre os gregos
Em Segurança, Território, População, na aula de 8 de fevereiro de 1978, Foucault oferece uma analítica do poder governamental que caracteriza o estado moderno. Para o filósofo francês, herdamos o poder político dos gregos e dos romanos, e sua análise busca distinguir, inicialmente, entre as concepções de poder político e de governo.
Após analisar diversas transformações do conceito de “governo” através da história, Foucault afirma não acreditar que “a ideia de que os homens podem ser governados seja uma ideia grega. ” O termo “governo”, no grego, não tinha ainda uma conotação política. O poder governamental é aquele que se exerce diretamente sobre os indivíduos, sem mediação, ao contrário de como nos gregos, os quais utilizavam a metáfora do governo como pilotar um navio, mas não as pessoas. A ideia de um governo dos homens é uma ideia cuja origem deve ser buscada, antes de tudo, no Oriente pré-cristão primeiro, e no Oriente cristão depois.
O poder pastoral, para Foucault, está ausente do contexto grego. Aqui, os deuses estabelecem a cidade, garantem sua solidez e fornecem orientação através de oráculos. Por mais que possam proteger, intervir e se irritar, eles nunca se relacionam com os cidadãos da maneira que um pastor guia seu rebanho, isso é, como uma “multiplicidade em movimento”. O poder do pastor é exercido em um rebanho móvel, não em uma terra ou território. O Deus bíblico, por isso, guia os movimentos de seu povo e é ele próprio ambulante, sendo sua liderança para mostrar-lhe o caminho a seguir. O objetivo desta forma de poder é dirigir o rebanho a um alvo específico.
O tipo de poder pastoral chega a ser mencionado em Homero e também nos pitagóricos, mas quando aparece em Platão, através de metáforas, é apenas símbolo, mas não explica, não tem função heurística. No livro I da República, a metáfora do pastor (Trasímaco) é negativa, representando quem governa pela força. Há, portanto, uma rejeição de um poder pastoral em Platão.
Em Platão, o pastor nunca funda leis. Sua função é lateral, coadjuvante – não é a função política por excelência (fundar a cidade e legislar). Platão utiliza a metáfora do tecelão e do político justamente para enfatizar a diferença entre os poderes pastoral e político. O homem político “costura”, isso é, costura as relações entre os homens. E assim como o tecelão precisa de lã trabalhada, o político também precisa de auxiliares. A essência da atividade do político é que, assim como o tecelão, ele liga o fio e a trama, liga os bons elementos formados pela educação, as virtudes.
Para os gregos, pastorear seres humanos é uma atividade pertinente aos deuses. No tempo regido por Cronos, no qual os homens nascem velhos (da terra) e se tornam jovens até desaparecerem, não há a necessidade o poder político – há apenas o poder pastoral. Já no tempo regido por Zeus, no qual os homens nascem bebês e envelhecem até a morte – isso é, no tempo da necessidade – a pólis existe para satisfazer necessidades básicas, sendo este não mais o tempo do pastoreio, do pastorado. Agora, na pólis, é necessário uma politéia.
O poder pastoral no cristianismo
O conceito de poder pastoral é uma culminação e um refinamento do pensamento de Foucault sobre o poder religioso, e não, como às vezes se considera, um novo campo de análise desenvolvido em 1978 em relação à governamentalidade.
O poder pastoral não é apenas um conceito histórico e transitório aos estudos sobre a governamentalidade, mas parte de um desenvolvimento mais longo sobre religião e poder. De acordo com Foucault, a noção de poder pastoral é necessária, pois é inadequado interpretar o fenômeno religioso em termos de ideologia (ou crenças) apenas.
A análise do poder religioso realizada por Foucault se vale de um método "descentralizador" para revelar um conjunto de operações que se desenrolam de maneira subjacente, oculta. Ao invés de ler a igreja e a teologia em seus próprios termos e de acordo com seu próprio discurso, ele fornece a analítica do poder subterrânea e mostra como as ideias e práticas teológicas se relacionam ao processo de individualização.
Foucault explica que sua abordagem do poder pastoral usa a mesma metodologia que ele utilizou em seu projeto mais geral, como no estudo das "disciplinas" no exército, hospitais, escolas e prisões (como, por exemplo, em Vigiar e punir), onde ele operou uma tripla descentralização. A primeira consistiu em se mover para fora da abordagem "institucionalicêntrica", que significa "ir atrás da instituição" para encontrar a perspectiva geral, que ele chamava de "tecnologia do poder". A segunda foi se mover para fora da abordagem "funcional" e retornar a uma "economia geral do poder", isso é, ler "estratégias e táticas" ao invés de funções. A terceira foi recusar um "objeto pronto" (tais como a loucura ou a sexualidade) a fim de identificar a maneira com que um "caminho da verdade" (conhecimento) é constituído, a forma com que objetos são criados como meios de ordenar e controlar através de um sistema de conhecimento e prática. O método descentralizador de Foucault mostra que a fim de compreender a governamentalidade, precisamos compreender as "estratégias e táticas" atrás da teologia cristã, isso é, as tecnologias atrás da teologia. O poder pastoral é uma tecnologia religiosa de poder através da qual as formas modernas de governamentalidade são constituídas. A abordagem de Foucault do poder pastoral é um mecanismo descentralizador, uma forma genealógica de ler a história de acordo com o poder e o corpo, mas é, ao mesmo tempo, o reconhecimento da importância do teológico para tal história.
O aspecto chave do poder pastoral é a forma em que ele é institucionalizado na igreja cristã. No cristianismo, o poder pastoral engloba tudo, e as leis, regras, técnicas e procedimentos se tornam institucionalizados . Foucault toma três abstrações teológicas – salvação, lei e verdade - e as descentraliza através de seu método de leitura da teologia de acordo com a tecnologia do poder. Embora essas abstrações tenham recebido pouca atenção, elas fornecem a base genealógica da racionalidade do estado moderno.
A abstração teológica da salvação fornece uma tecnologia de poder baseada em uma “economia das falhas e méritos”, a qual se torna, no indivíduo moderno, um processo de “identificação analítica”, uma identificação baseada no autoexame. A noção teológica de lei é uma tecnologia de poder que cria obediência e submissão, a qual, na racionalidade moderna, estabelece sujeição (“assujeitamento”). A ideia teológica de verdade cria uma tecnologia de poder que estabelece uma verdade interna através da direção e da conduta, a qual é levada adiante como “subjetivação” (a internalização da verdade para um segredo interno). O que a leitura de Foucault confirma é a importância dessas abstrações teológicas para compreender os processos do governo moderno. Ele descentraliza a crença e a prática religiosas como tecnologias de poder e revela sua força dentro da racionalidade política moderna.
A presença do pastorado no cristianismo se mostra penetrante de tal modo que até mesmo a reforma protestante, que foi uma revolta contra o pastorado da Igreja Católica, criou sua própria estrutura pastoral (SANTOS, 2010, p. 54).
Poder pastoral e estado moderno
Um dos debates em torno da noção foucaultiana de poder pastoral gira em torno de sua continuidade ou não no mundo moderno; se a mudança para a governamentalidade durante a formação do período clássico foi de fato uma ruptura com esta forma de poder. A principal razão para esta ambiguidade é que o próprio Foucault nunca deu continuidade às suas inúmeras sugestões da persistência do poder pastoral e parece indicar, às vezes, uma ruptura com a emergência da governamentalidade.
Na aula de 15 de fevereiro de 1978, Foucault é enfático, no entanto, ao afirmar que o poder pastoral nunca foi verdadeiramente abolido. O estado é um pastorado moderno, e se podemos dizer que a cabeça do rei foi cortada, não o foi a do pastor.
Foucault mostra como este poder pastoral foi institucionalizado, transposto e modificado nas comunidades cristãs principalmente a partir do terceiro século. Isso se deu na forma de mecanismos precisos de organização baseados no princípio de que todo indivíduo, independente de idade ou situação, do início ao fim de sua vida e em cada detalhe de suas ações, deveria ser governado e deveria se deixar governar, isso é, ser guiado para sua salvação por alguém ao qual ele possui uma relação global, mas uma obediência meticulosa, detalhada.
Tais técnicas eram centralmente ligadas ao processo através do qual o cristianismo, como uma comunidade religiosa, foi institucionalizado como uma igreja. Em contraste com o contexto hebraico, aqui o poder pastoral possui uma arte desenvolvida de direcionar condutas e de guiar, mas também, de acordo com Foucault, de pressionar, de manipular indivíduos diariamente, durante a vida inteira.
Uma das transformações do poder pastoral coincide com a emergência do estado moderno e das “insurreições de conduta”, tais como a reforma protestante e a contra-reforma católica. Foucault mostra como esta forma de poder foi politizada, dando origem a práticas reflexivas e calculadas que objetivavam não salvar almas, mas governar homens, com um apelo estratégico à verdade na superfície motivado por interesses políticos, envolvendo o exercício de poder violento e excessivo, cuja busca precisa ser velada. Este apelo à verdade envolve dogmas, conhecimento individualizado dos indivíduos e técnicas de governo reflexivas e estreitamente reguladas. Esta forma de poder é visível no desenvolvimento das artes de governar baseadas no pastorado cristão, um desenvolvimento que envolve tanto uma secularização quanto uma intensificação. De um lado, há uma expansão na sociedade civil além da igreja e da autoridade eclesiástica, a qual é levantada como um problema filosófico em Descartes, por exemplo, o qual busca regular o pensamento a fim de chegar à verdade. Outra expressão teórica deste shift, desta passagem, foram as discussões empreendidas no século XVI em torno da questão da condução e do governo, como a realizada por Michel de Montaigne. Tais debates buscavam responder a questões do tipo: como governar a si mesmo do melhor modo possível? Como conduzir as crianças? Como conduzir da melhor forma a família?
A questão da conduta também é levantada em uma esfera diretamente política, na qual a soberania tem a tarefa de conduzir as pessoas. Aqui o poder pastoral não é mais especificamente religioso ou teológico, mas também filosófico e político. Por outro lado, as formas religiosas de governar são intensificadas e expandidas como poder pastoral ao passo que são exercidas intensamente na vida diária através de uma multiplicação e diversificação de técnicas introduzidas nos vários domínios da vida (tais como na pedagogia infantil, higiene, pobreza, vida doméstica e até mesmo na vida política). Em geral, a leitura histórica de Foucault é que pelo fim do século XVII esta mudança resultou na incorporação do poder pastoral na maioria das funções na governamentalidade. O efeito individualizante do poder pastoral se torna subjugação através da ênfase no imperativo de obedecer e da transposição do papel do governo de Deus ou seus representantes, orientada por motivos religiosos, para a soberania orientada por motivos políticos.
O que ocorreu neste período, para Foucault, não foi uma passagem do pastorado religioso para uma nova forma de conduta e direção dos homens. Antes, o que se passou foi uma proliferação generalizada das questões e técnicas de condução (SANTOS, 2010, p. 55).
A transição das técnicas do pastorado religioso para o governo no período moderno se deu através da função exercida pela polícia estatal. A função da polícia, neste período, era bem diferente do que usualmente se entende hoje. A polícia tinha sob seu encargo, por exemplo, áreas como a religião, a moralidade, a saúde, os mantimentos, a segurança pública, o comércio, as fábricas e os pobres . Se, no pastorado, era importante conhecer o que se passava na consciência e na alma de cada ovelha para melhor conduzi-la para a salvação, no estado de polícia trata-se de executar ações para conduzir os homens à felicidade e ao bem-estar nesta vida, em sua sociedade. É importante ressaltar, no entanto, que esta transição não foi uma passagem literal das funções desempenhadas pelo pastor para o político . O pastor religioso não cuidava apenas da alma das ovelhas, mas já tinha também algumas preocupações com seu corpo e sua vida terrena, secular.
A "passagem" do poder pastoral das almas para uma governamentalidade sobre os homens se dá, principalmente, através das práticas de conduta e através da noção de condução. Foucault, no entanto, não detalha tal procedimento em Segurança, Território e População, mostrando-se consciente de que no espaço de um curso não poderia "sequer esboçar a série de transformações pelas quais se passou efetivamente dessa economia das almas ao governo dos homens e das populações”.
Para resumir, pode-se dizer que a crise do pastorado religioso não levou ao seu desaparecimento, mas à sua intensificação sob uma roupagem religiosa ao mesmo tempo que à sua extensão sobre o plano temporal, isso é, à sua secularização. Este processo teve início quando este se encarregou de questões relacionadas à vida material dos indivíduos, tais como problemas relacionados a seus bens e a educação das crianças.
Conclusão
O poder pastoral, para Foucault, é uma forma de poder orientada a indivíduos com a intenção de governá-los de forma contínua e permanente. É essencialmente um poder beneficente: "O poder pastoral é um poder do cuidado". Ele acompanha o poder soberano de várias formas através da história política ocidental, e se tornou central para o tipo de racionalidade política implementada no exercício do poder do estado moderno. Ele não pode ser assimilado aos métodos usados para sujeitar os homens a uma lei ou para uma soberania porque sua racionalidade, seus fins e meios são radicalmente diferentes. É um poder sem território e individualizante: o poder político moderno passou de exclusivamente soberano sobre um território para a regulação de uma população.
O pastorado cristão forma o pano de fundo para se compreender a tecnologia de poder específica do estado moderno. Para Foucault, a ideia de um governante como pastor de um rebanho era completamente estranha ao pensamento político grego e romano, mas era central para sociedades orientais antigas, tais como a egípcia, a assíria e a judaica. O governante tinha que juntar, guiar, proteger e guiar seu povo como um bom pastor guia suas ovelhas. Esta ideia teve grande repercussão no pensamento e nas instituições cristãs e, mais tarde, também para o governo do estado administrativo moderno.
Foucault insiste que este modelo de poder é distintivo no que ele é individualizante: o poder do pastor implica atenção individual dada a cada membro do rebanho. Enquanto a história política ocidental é geralmente caracterizada por suas inovações em termo de estruturas legais e formas de diminuir a violência, Foucault chama a atenção para o fato de que também inventamos esta estranha tecnologia de poder que é baseada na racionalidade do cuidado pastoral: a vasta maioria das pessoas é tratada como o rebanho de alguns poucos pastores. É uma tecnologia de governo - uma forma de governamentalidade no sentido geral do termo - que não foca na questão da unidade da polis e de seus cidadãos em um framework legal, mas diz respeito às vidas dos indivíduos em sua especificidade. O poder pastoral deve constantemente "assegurar, sustentar e melhorar as vidas de cada um". Ele requer obediência, mas também conhecimento detalhado sobre os indivíduos. Ele foca na conduta do indivíduo e produz sujeitos obedientes através da "conduta da conduta" - a normalização da conduta das pessoas.
Referências
CARRETTE, Jeremy. Foucault, religion, and pastoral power. In: FALZON, Christopher; O'LEARY, Timothy; SAWICKI, Jana: A companion to Foucault. Malden: Blackwell Publishing Limited, 2013. p. 368-383.
DJABALLAH, Marc. Foucault on Kant, Enlightenment, and Being Critical. In: FALZON, Christopher; O'LEARY, Timothy; SAWICKI, Jana: A companion to Foucault. Malden: Blackwell Publishing Limited, 2013. p. 264-281.
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso dado no Collège de France (1977-1978). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
OKSALA, Johanna. From biopower to governmentality. In: FALZON, Christopher; O'LEARY, Timothy; SAWICKI, Jana: A companion to Foucault. Malden: Blackwell Publishing Limited, 2013. p. 320-336.
SANTOS, Rone Eleandro. Do governo pastoral à governamentalidade: crítica da razão política em Michel Foucault. In: Peri, v. 02, nº 1, 2010, p.48-64.
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